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24/08/2020 - 09h51min

Daniel Andriotti

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Tio-monstro, ciência e religião

Não aguento mais Covid.

Então, vamos falar de algo um tanto quanto pior. A maldade humana mostrou a sua face mais cruel essa semana: uma criança de dez anos vinha sendo violentada por um tio-monstro desde que ela tinha seis. E, muito provavelmente, o caso só veio à tona porque não houve mais como esconder a gravidez. Até aí, infelizmente, nenhuma novidade. Centenas de meninas violentadas são obrigadas a recorrer a um aborto legal no Brasil em caso de estupro de vulnerável, previsto pelo Código Penal há 80 anos. Por esse motivo, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo concedeu à menina – que mora com a avó, porque a mãe a abandonou e o pai está preso –, o direito a esse tipo de assistência.

Mas nada é tão ruim que não possa piorar: por se tratar do estupro de uma criança, violação abominável aos direitos humanos, e como a menina-mãe corria iminente risco de vida, o caso deveria correr em absoluto sigilo. Só que não. Como somos brasileiros, uma tragédia infantil virou sensacionalismo político e uma crueldade cínica para a vítima, que é negra e pobre. O holofote foi aceso por uma ex-militante do movimento feminista bastante conhecida na latrina do submundo das redes sociais. Ela postou o fato no seu Twitter citando, inclusive, o nome da criança. Alerta dado, sua amiga e ex-chefe, a ministra Damares Alves, da Secretaria da Mulher, não perdeu tempo. Enviou emissários para o Espírito Santo e, é claro, também se manifestou em sua página do Facebook, lamentando a decisão da Justiça de autorizar o aborto, criando um clima de terror e de caça às bruxas no judiciário capixaba. Assim, o que era para ter ficado apenas no âmbito da justiça e da saúde, ganhou uma repercussão tão indesejada quanto a gravidez.

O vazamento da informação obrigou o Ministério Público do Espírito Santo a buscar uma solução longe dali. A menina então foi levada para Recife e atendida no Centro Integrado de Saúde, hospital-referência que atende a cada mês – em média – 40 casos como o dela. Quem pensa que essa história terminaria aqui, enganou-se redondamente. Do lado de fora da clínica, mais uma ação desencadeada pelas postagens infelizes da ministra e sua amiga reuniu um grupo de pessoas que, de mãos dadas, gritava “assassino...assassino” para o médico responsável pelo procedimento.

Imagine, leitor, o que será dessa criança se não houver um amplo acompanhamento psicológico por longos anos? Ela faz parte de um quadro comum a milhões de crianças pobres no Brasil. Criada pela avó e com um familiar que a estupra. Trata-se de um ex-presidiário que já voltou ao cárcere mas que deveria estar no quinto dos infernos abraçado com o dono da casa, o diabo. A avó é identificada como alguém bastante responsável com a educação da menina e que só não estava por perto dela quando tinha de sair para trabalhar como ambulante. Tanto ela como a própria neta disseram à Justiça que queriam ser amparadas pela legislação brasileira e interromper aquela gravidez fruto de violência.

Se por um lado há barulho e um clima ameaçador para quem está dando suporte às vítimas, por outro a publicidade pode ter um efeito bumerangue. A cada hora, quatro meninas brasileiras de até 13 anos são estupradas, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, e a maioria dos crimes é cometido por um familiar. O embate de conservadores, incluindo a bancada evangélica, se intensificou nos últimos anos, seguindo o padrão da direita radical que ocorre em outros países. Mas aqui no Brasil, os extremistas misturam ciência com religião e perdem a noção de que entre uma criança estuprada, um feto no útero, um médico ‘assassino” e um estuprador, o único protegido pela lei é o estuprador. Por isso é que quando uma Ministra de Estado se refere a esse caso como “quanto sofrimento!!!” na sua rede social, não se sabe exatamente a quem ela está se referindo...

Daniel Andriotti

Publicado em 21/8/20.

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