27/04/2020 - 11h54min
Nesse completo isolamento social que decidi praticar, estou descobrindo detalhes de um mundo feito de muitas emoções; meteoros luminosos passando no céu do meu esquecimento. Embarco na máquina do tempo através de fotos e recortes de jornais, de cartões e bilhetes, de livros e boletins escolares. E alinhando lembranças com o que acontece agora, como criança a juntar peças de grandioso quebra-cabeça, compreendo melhor como minha vida tem acontecido.
Nas fotos do colégio das freiras, onde eu e meus irmãos fizemos as primeiras leituras e escritas, encontro nossas imagens de primeira comunhão, o quadrinho da Santa Ceia e a Virgem Maria de cristal que herdei; e um convite de casamento.
Pausa para o chá, na estante vejo o livro que explica sobre os anjos da guarda. Coincidência divina, me vem à lembrança um milagre que nos aconteceu décadas atrás.
Meu irmão marcara a prova final do terno que usaria no seu casamento, e a mãe quis ir junto, temendo pelas escolhas dele por ser daltônico. E eu, que gostava de passear com a família, também fui. Rumamos, os três, para o quinto andar das Lojas Renner, no fusca novinho em folha do noivo.
Enquanto o alfaiate riscava o traje com giz colorido e marcava a bainha com alfinetes, sob o olhar daquela que levaria o noivo até o altar, eu passeava entre araras de camisas e gravatas. Em dado momento, porém, notei uma fumacinha branca que parecia vir das escadas, e um funcionário da loja passando apressado. Mesmo sem saber o que realmente acontecia, fui até o provador e avisei sobre o que eu tinha visto.
Aquela fumaça rapidamente começou a escurecer e se espalhar por todo o andar. Saímos às pressas na direção das escadas que nos levariam aos andares mais baixos. Mas ao tentarmos chegar no terceiro, as chamas não permitiram.
Naquele momento assustador, a mãe ficou em estado de choque e meu irmão precisou carregá-la no colo. Eu subi na frente, sem nada enxergar, segurando a mão dela para que não nos perdêssemos uns dos outros, à procura de alguma saída, talvez à espera de um milagre. E o milagre aconteceu.
De repente, alguém que eu não conseguia ver, apenas ouvir, pegou meu braço com determinação e disse: “Vem comigo, vou tirar vocês daqui”. E eu fui, mãos dadas com a mãe e o nosso salvador, conectada com meu irmão.
Chegamos a uma parede, e aquela voz me orientou sobre uma pequena janela que havia ali perto. Quando chegamos a ela, só Deus sabe como, quase sem conseguirmos respirar, os vidros se quebraram. Obedecendo ao que ouvia, pulei sobre um telhado, depois a mãe e meu irmão fizeram o mesmo. Sem saber por onde sairíamos, jovens estudantes de um cursinho pré-vestibular, do outro lado da rua, nos orientaram com gritos e gestos inesquecíveis.
Era dia 27 de abril de 1976.
Cristina André
Publicado em 24/4/20.
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